Cavalo
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25.01.2024

No Music Left

Cavalo (Rio de Janeiro) e Papai Contemporary (Oslo) têm o prazer de apresentar ‘No Music Left’, a primeira exposição individual fora da Noruega do artista Aksel Ree. Abrindo no dia 25 de janeiro, a exposição investiga os contrastes entre o corpo humano e a natureza, inocência e maturidade, criação e morte, particularmente através do período da infância do artista após o falecimento do seu pai, um pianista clássico.

Ree navega pelos desafios de sua juventude através da criação de esculturas e instalações poéticas, investigando os ciclos de luto e renascimento após a ausência paterna e o trauma familiar que se seguiu. O artista apresenta uma nova série de obras, incluindo a instalação que dá título à exposição – um arranjo de pedais de piano suspensos no teto da galeria, complementados por um pé esquerdo decepado esculpido. Além disso, Aksel apresenta Interlude I e II (Umbilical and Floral Motifs), um conjunto de peças de parede em mármore com temas florais em estilo Art Nouveau adornando a cicatriz do umbigo.

‘No Music Left’ narra o delicado processo de fazer as pazes com o passado e com questões não resolvidas. Essas respostas podem vir de simples atos como olhar as coisas de uma perspectiva diferente. Em When I look upside down on a graveyard isso pode ser observado em uma foto projetada na parede com a imagem invertida. É uma lápide em forma de obelisco cercada por árvores. O artista reposiciona este exemplo de arquitetura fálica em uma adaga apontando para baixo ou uma estalactite, espelhando este símbolo de masculinidade e fazendo-o ficar voltado para o chão.

13.12.2023

Cifras do Baile

10.11.2023

Sala de Espera

No dia 09 de novembro a Cavalo apresenta Sala de Espera, a segunda individual de Vijai Maia Patchineelam no espaço da galeria , em Botafogo. A exposição reunirá obras que representam um ciclo de dez anos de prática e pesquisa do artista. Durante essa década, Vijai buscou investigar o posicionamento de artistas dentro da divisão administrativa de Instituições de Arte e experimentar o potencial das atividades ali desenvolvidas. Em busca de mudanças estruturais, a pesquisa defendia a vinculação de artistas como parte integral, e remunerada, no funcionamento e planejamento de museus, fundações, espaços culturais, coleções, entre outros.

Em 2013, Vijai transformou seu ateliê individual em uma cozinha coletiva e informal a contragosto da diretoria da Jan van Eyck Academie, Países Baixos. A criação da cozinha informal teve como intenção criar um espaço de trocas entre artistas, curadores, designers além de orientadores e demais funcionários. No ano anterior, a Academia havia passado por uma renovação que retirara a cantina, que funcionava também de cozinha coletiva fora do horário comercial, e no seu lugar colocou um Restaurante Café aberto ao público. As negociações junto à diretoria para manter a cozinha informal aberta acabou por motivar Vijai a transformar essa experiência em um doutorado prático-teórico. Concluído ano passado, o doutorado resultou na publicação do livro The Artist Job Description, for the Employment of the Artist, as an Artist, Inside the Art Institution (2020).

Já no Brasil, a pesquisa de Vijai se desenvolveu através da colaboração com o Instituto Moreira Salles que resultou no fotolivro Samba Shiva: as fotografias de Sambasiva Rao Patchineelam (2017). O foto-livro apresenta as fotografias tiradas pelo geólogo Sambasiva, pai de Vijai, que retratou sua migração da Índia ao Brasil, via Europa, entre o final da década de 60 ao início da década de 80. Em paralelo a sua história de família, o trabalho editorial de Vijai junto ao IMS buscou uma reflexão sobre a relação entre artista e instituição através do questionamento de conceitos como de autoria e legitimação institucional. Reflexão que culminou em discussões produtivas em relação a aspectos contratuais e autoria artística compartilhadas.

Para a exposição Sala de Espera, Vijai apresenta pela primeira vez no Brasil, a colaboração com o artista Fernando Torres fundador do espaço independente de arte-sonora Plano B, Lapa . Entre 2004 e 2013, o Plano B, gerido por Fernando Torres e Fátima Lopes, teve um papel importante de fomentar a cena experimental de som local e de alcance internacional. A colaboração entre Fernando e Vijai resultou no LP duplo Plano B, Lapa (2019) que ainda não foi lançado no Brasil devido a adiamentos causados pela pandemia.

Sala de Espera faz a chamada para o lançamento do LP duplo Plano B, Lapa. Evento paralelo à exposição que ocorrerá no dia 18 de novembro de 2023, no espaço Tropigalpão, na Glória. Mais informações sobre o evento serão anunciadas em breve.

 

Agradecimentos: Adrijana Gvozdenović, Beatriz Lemos, Denise Milfont, Elvis Almeida, Fabien Silvestre Suzor, Felix Rapp, Fernando Torres, Filipe Lippe e Sofia Caesar.

 

Trecho em português do posfácio do livro `The Artist Job Description, for the Employment of the Artist, as an Artist, Inside the Art Institution` (2020)

[…]
Na metade do primeiro ano da pandemia do COVID-19, enquanto eu colocava o assunto em dia numa conversa por telefone com meu amigo, o artista Stefano Faoro, nós inevitavelmente nos enveredamos pelas lembranças da época em que participamos juntos da Jan van Eyck Academie (Maastricht). A conversa correu do modo como essas conversas tendem a correr. Nada fora do comum. Na reta final de nossa conversa, enquanto trocávamos histórias sobre as expectativas frustradas daqueles dias, nós tentamos calcular quantos anos nós dois somados tínhamos em participações em diferentes residências e programas de pós-graduação. Stefano levantou a questão de o que é que tínhamos ganhado com isso tudo, considerando que havíamos passado a maior parte do período que foi
dos nossos vinte-e-tantos aos nossos trinta-e-poucos anos de idade em várias instituições de arte diferentes, quase sempre em países do norte da Europa. Naquele momento, nós nos encontrávamos sem muito o que mostrar como resultado daquilo em termos econômicos, assim como em termos de frutos das várias promessas de oportunidades vindouras, mas que parecem nunca de fato se materializar, bem conhecidas de quem integra por um tempo as instituições de arte tidas por vários como de prestígio. Tudo aquilo que estava sendo dito era sublinhado por nossa apreensão devido às incertezas quanto ao futuro imediato que nós experimentávamos então e que ainda experimentamos — em relação à pandemia, à realidade da crise climática e à iminente instabilidade política que viria como consequência de ambas.

Os anos de experiência em instituições de arte, começando pelo esforço aplicado no processo de ser aceito para poder desenvolver a própria prática, depois na experiência de passar pelas instituições e, enquanto se passava por elas, nas várias formas com que se aprende a estar ali nelas — esse esforço todo informou o desenvolvimento da minha prática como artista, para o bem e para o mal. Fazer essa publicação tem sido uma tentativa de desenterrar e encarar, em vez de evitar, as tensões que são parte do que define a relação entre artistas e instituições, especialmente numa época em que a maioria das próprias instituições de artes europeias estão sob a pressão das políticas de austeridade. Nesta publicação, documentei as diferentes etapas de elaboração da minha tese de doutorado, ‘A
Descrição do Trabalho de Artista: Uma Pesquisa Artística Guiada pela Prática Visando o Emprego do Artista, como Artista, Dentro da Instituição de Arte’, ao mesmo tempo em que exponho momentos vitais de aprendizado que, como consequência, levaram à transformação de minha prática artística. Uma prática institucional que é devedora do pensamento artístico e, subsequentemente, busca maneiras não-administrativas de se organizar no interior das estruturas administrativas, visando se tornar uma especulação sobre a plasticidade das estruturas institucionais e seu potencial para a colaboração criativa entre
artistas e instituições.

Para mapear tanto o desenvolvimento da pesquisa como a já mencionada transformação, fiz uso de momentos públicos para gerar material textual para essa publicação. Escolhi trabalhar com apresentações públicas e conversas transcritas a fim de manter o texto próximo da palavra falada, de forma a transmitir ao leitor momentos importantes de aprendizado. Com o episódio da cozinha informal somado à transcrição da fala de artista, foi importante reencenar aquela experiência em conversa com outras pessoas para alargar o entendimento dos eventos que levaram à cozinha informal, assim como suas consequências. A publicação então avança para o projeto editorial Samba Shiva: por meio de outra fala transcrita, ela rearticula algumas das lições colhidas da experiência com a cozinha informal para gerar um novo esquema institucional do Instituto Moreira Salles. Foi pessoalmente importante para mim, ao avançar nisso, me certificar de que a minha prática abordasse a nova instituição de forma não-antagonística — se possível, sem perder seu gume crítico durante o processo.

O que eu de fato tirei desse episódio da cozinha informal para o projeto editorial Samba Shiva foi um melhor entendimento do espaço e do papel atribuído aos artistas pelas instituições, bem como das expectativas por elas colocadas sobre os artistas. Do espaço/papel ao qual o capricho de um artista individual é incorporado, contanto que as expectativas de resultado artístico vindo do artista sejam alcançadas e/ou tornadas apresentáveis. Uma das maneiras de abordar isso, então, era ocupar esse espaço/papel mas, em vez de buscar crescimento e sucesso dentro dele, aprender a frustrar as expectativas das instituições e a lidar eu mesmo com as consequências negativas dessa frustração. De modo contra-intuitivo, esse processo de desafiar os protocolos institucionais abriu uma via para o experimento e o teste com as fronteiras invisíveis daquele dito espaço/papel dentro da instituição. Em Maastricht, tratou-se de desafiar a nova ordem institucional definida por forças econômicas neoliberais maiores, que se manifestaram sob a forma do ateliê recém-reformado. Isso eu fiz não usando o ateliê para produzir arte e recusando a sugestão da instituição de apresentar a cozinha informal como trabalho artístico segundo os critérios do programa público de ateliês abertos dela. Com Samba Shiva, não se tratava tanto de frustrar a instituição, já que o diálogo com a instituição abriu o espaço para o diálogo. Gosto de pensar que essa colaboração conseguiu desafiar,até certo ponto, os mecanismos de legitimação que os critérios institucionais são normalmente projetados para reforçar. Conseguiu-se isso, em parte, repensando-se a autoria, evitando-se a completa apropriação do que é feito fora do campo da arte profissional, e dando-se o devido crédito aos vários colaboradores envolvidos. Como resultado, reatribuiu-se a visibilidade potencial conferida por um prestigiado mecanismo de fomento da arte, bem como algumas crenças acerca da relação entre a autoria e o artista. Querer e poder jogar com certas preconcepções sobre o que ser um artista acarreta e sobre o que constitui uma prática artística foi um passo necessário para ganhar alguma vantagem ao negociar com instituições — foi o teste do já mencionado potencial plástico da instituição. Por outro lado, experimentar com aspectos desta pesquisa no projeto editorial Samba Shiva me fez perceber as consequências do que a pesquisa se propunha em relação à equipe e aos empregados da instituição, já sobrecarregados com o trabalho adicional de rever e talvez alterar procedimentos institucionais já estabelecidos. Naquele momento, a partir da posição em que eu entrei na instituição, fui forçado a refletir sobre as ramificações da minha intervenção nos protocolos institucionais, e usei essa reflexão na minha própria ação como artista-pesquisador desenvolvendo um PhD em Artes.

Estar empregado em meio período na Royal Academy of Fine Arts Antwerp foi bastante importante no desenvolvimento da pesquisa, já que, por isso, eu podia me enraizar numa instituição antes de seguir com outra instituição, a pesquisa. O período de quatro anos forneceu a estabilidade econômica que, por sua vez, me forneceu o tempo, a perspectiva e os recursos para me dedicar à pesquisa e assumir riscos com ela. Posteriormente, já mais consciente e confortável no interior de
um contexto educacional, comecei a me envolver em diferentes atividades relacionadas ao ensino, à tutoria e a outras atividades; comecei também a observar a liberdade que me era dada, como artista-pesquisador, para iniciar debates acerca de política, raça, classe e gênero, temas que, na minha opinião, a instituição não abordava com a urgência devida. Um desses casos foi a organização do seminário de pesquisa Mudanças de Descrição, A Descrição do Trabalho do Artista, que vem em seguida à primeira parte desta publicação. Com o seminário, eu pretendia juntar meus pares para pensarmos e trabalharmos juntos rumo a estratégias de negociação de outras maneiras de se adentrar e de se estar nas instituições de arte. Mais importante, talvez, tenha sido ser lembrado por seus pares de que estar inserido em uma instituição não necessariamente resulta em atitudes que reafirmam a instituição; em alguns casos, isso pode tomar a forma de um protesto.

[…] Para concluir este posfácio, gostaria de considerar novamente o que significava ter passado por aquelas instituições ao longo dos anos, se não em termos de retornos palpáveis, então talvez como entendimento do papel dos artistas dentro das instituições de arte, que é, por um lado, crítico e, por outro, fértil. Um entendimento sensível ao conhecimento potencial do artista no que diz respeito ao modo como as coisas são feitas dentro das instituições de arte. Ligado a esse entendimento, está a consciência de que as condições de trabalho para os artistas, via de regra, são função do modo como as instituições respondem à pressão de cortes iminentes de gastos e coisas do tipo. Tendo dito isso, como nós artistas podemos exigir certo grau de autonomia dentro de e em relação a estas instituições, grau esse necessário para darmos continuidade a nossas práticas, ganharmos a vida e contribuirmos para a construção de uma responsabilidade comunal de preservação da diversidade das práticas artísticas, pelo bem do funcionamento saudável do campo da arte?

27.10.2023

Preceito Fundamental

“Preceitos fundamentais” representam direitos civis que deveriam ser constitucionalmente protegidos, englobando vida, liberdade e propriedade. Esses direitos inalienáveis incluem a proteção contra tratamentos desumanos e degradantes, juntamente com a garantia de liberdade de expressão, manifestação de pensamento e igualdade na sociedade. No entanto, somos diariamente confrontadas com questionamentos sobre nossa liberdade em relação aos nossos próprios corpos e à capacidade de expressar nossas ideias, muitas vezes condicionadas pelas normas sociais que nos cercam.

A exposição que inaugura no próximo dia 28 de outubro, no Espaço CAMA em São Paulo, reúne trabalhos de 15 artistas mulheres e não binárias com o intuito de explorar temas como a intersecção entre expressão, sexualidade, escolhas religiosas e o direito à individualidade. “Apesar desses temas serem recorrentes nas pautas sociais e artísticas, pouco mudou na prática. Essas pessoas continuam enfrentando as mesmas violências que datam séculos”, afirma Maíra Marques, co-fundadora da plataforma Comadre que assina a curadoria da exposição, Gabriela Davies, sua parceira, complementa, “O nome da exposição, Preceito Fundamental, inspirado pela movimentação da ADPF442, reconhece que o direito sobre o corpo é concreto e não deve ser objeto de discussão.

A mostra pretende incitar a reflexão sobre as complexas interações entre autonomia, corpo e sociedade, proporcionando um espaço para explorar esses temas por meio da arte. Para isso, conta com a participação de Ana Clara Tito, Anna Costa e Silva & Nanda Félix, Ateliê Transmoras, Carla Santana, Claudia Jaguaribe, Geoneide Brandão, Giovanna Langone, Guler Ates, Lyz Parayzo, Márcia X, Maria Antonia, Polvo de Gallina Negra, Santarosa Barreto e Thix.

Por meio da venda das obras na exposição, a Comadre e o Espaço Cama destinarão uma parte dos recursos ao Projeto Vivas, organização sem fins lucrativos que auxilia mulheres e pessoas com a capacidade de engravidar a acessarem serviços de aborto legal, tanto no Brasil quanto no exterior.

08.09.2023

Escada D’água

06.09.2023

Doispontozero

22.06.2023

Deus e o diabo no Sertão Carioca

Nathalia Grilo

A história conta que, no coração da maior floresta em área urbana do mundo, vibra uma poderosa força ancestral, de caráter Atlântico, que fez brotar no entorno da exuberância de sua fauna e flora, a segunda região mais populosa da cidade do Rio de Janeiro: a Zona Oeste. Diz-se que o isolamento imposto por simbólicas fronteiras fez surgir ali uma “cidade dentro da cidade”, uma espacialidade de orientação agrária que viria a se tornar o maior centro administrativo do município. Carregada de contrastes iridescentes que fizeram, até os anos 1950, o território ser conhecido por “Sertão Carioca”. Este pedaço de mundo pariu, em 1990, o artista Tainan Cabral; numa década conturbada em que a área passou a ser considerada uma das mais violentas do país, devido a intensa escalada da brutalidade na guerra entre as forças policiais e o tráfico de drogas.

Não por acaso, o título de sua primeira exposição individual evoca a energia antagônica que orbita a Zona Oeste, através de duas importantes obras que marcam as tentativas de construção e interpretação da nossa nacionalidade, ao apresentar um olhar atencioso para um Brasil sertanejo, belo, violento e desconhecido. Por um lado, temos o clássico ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964), longa-metragem de Glauber Rocha; por outro temos ‘O Sertão Carioca’ (1936), livro do naturalista Magalhães Corrêa. O filme de Glauber marca a primeira fase do cinema novo e amplia a crítica social em relação à exploração de trabalhadores e à pobreza no sertão nordestino. Já o livro de Corrêa, comenta a formação da zona oeste do Rio de Janeiro e dos empreendimentos que invadiram essa parte rural ao longo das décadas de formação do estado. A aridez da vida, em um lugar abandonado por Deus e pelo Estado, é tema comum em ambos os casos. Mas existe ainda o sertão metropolitano surgido de Tainan, que representa essa área de conflito armado, de aspereza cotidiana, assim como a catarse dos bailes funk, das feiras de ruas e da natureza suburbana.

Feitura de Cria

Com uma trajetória que extravasa uma década, Tainan Cabral foi discípulo de mestres grafiteiros que lhes proporcionaram os primeiros contatos com a pintura, esses mestres eram jovens que tingiam os muros de Camará com as fabulosas nuvens de tinta que fluíam pelo bico das latas de spray. Com o tempo, o artista se aprofundou na poética do seu bairro e passaria a ter mais compreensão dessa cosmosfera feita de caos e harmonia, até atingir aquilo a que chamou ‘feitura de cria’, uma frutificação que nasce da intimidade que possui com o seu entorno e com a cultura que dali floresce. Tainan se volta para a “criatividade popular” como se estivesse em busca de nutrição, e passa a investigar tanto a sua vivência entre a pista e a favela, como retira o sumo das observâncias que faz das paisagens, dos modos de vida e das produções locais. Essas sutilezas pontuam profundas conexões que enredam sua vida e prática; e acentua o gosto que o artista tem por botar reparo nos usos dos objetos cotidianos, para depois transformá-los em signos que dizem respeito à essência do que o formou.

Ao ostentar a espiritualidade mundana de quem fugiu dos dogmas pentecostais, ele não deixa de buscar a presença divina nos pequenos detalhes que surgiam pelo caminho. Essa busca pode ser percebida pela forma como invoca, em suas obras, as presenças cromáticas da comunidade, conjurando sentimentos de paz interior e equilíbrio energético do ambiente. Desse modo, ao ser orientado pela ética que guia toda sua narrativa e as formas de sua produção, o artista opta por uma paleta pastel, clara e suave, o que remonta às casas pintadas com o cal que foi tingido pelas bisnagas do popular corante Xadrez. Essas pinturas se desgastam com os efeitos das chuvas e do sol dando um ar desbotado nas paredes das casas. Em contraste, o artista também apresenta em suas obras as cores vibrantes que remetem aos estímulos visuais existentes nas favelas, como, por exemplo, as malhas dos bailes e os desinfetantes coloridos engarrafados em PET expostos pelas calçadas. Os Degradês servem de fio condutor de uma potência lúdica que anuncia, a todo o tempo, que Deus e o Diabo caminham juntos, habitam o santuário de rua que, antes era feito de barricadas contra as operações policiais, e que agora está repleto de obras de arte coloridas pelo artista que transforma armas de guerra em esculturas públicas, ao tempo em que denuncia a violência colonial que, de forma sistemática, ocorre nas periferias do país.

Essa criticidade se desdobra na escolha dos materiais utilizados. Por exemplo no caso dos componentes de algumas obras em que temos os populares chaveiros do mascote da marca de acessórios Kipling. Esses macaquinhos coloridos chegaram às favelas através de desvio de cargas para suprir as necessidades logísticas do tráfico. As cordas que suspendem as obras são as mesmas utilizadas pelos feirantes para esticar as lonas das barracas, o artista recusa o nylon transparente – tão utilizado nas exposições de arte contemporânea -, para em seu lugar, firmar um discurso, e uma prática, sobre seu próprio território.

Uma parte significativa das obras tem como base – ou como parte – a lona emborrachada e a ráfia. Desbotadas e desfiadas pela ação do sol, chuva e ventos, esses materiais lembram quedas d’água e as cascatas de cachoeiras tão comuns naquela área. Outro material relevante são os tubos de lança perfume; aqui eles se tornam receptáculos de líquidos coloridos e vibrantes, o artista os organiza tendo como referência a disposição dos desinfetantes que são vendidos nas calçadas da comunidade, formando acordes sinestésicos que nos traz a ideia de ‘sedução das sensações’, uma espécie de desejo motivado pelo estímulo cromático. Os bicos desses tubos também são ressignificados e ganham a semântica de adorno, lembrando pequenas plantas que formam cortinas decorativas. Este trabalho só pode existir a partir do reconhecimento da comunidade, da permissão concedida pelas pessoas que ali vivem: coletar os frascos proibidos pelo chão no final do evento, quando todos já foram embora e resta apenas um mar de lixo nas ruas.

Essa ‘feitura de cria’ também rememora os tempos em que, para ganhar a vida, o artista precisou trabalhar de vendedor ambulante nos vagões dos trens do Rio de Janeiro. Assim como seus amigos de profissão, Tainan utilizava os buracos dos muros para poder acessar o embarque nos trens e assim vender sua mercadoria. Nesta época, como já fotografava e pintava, aproveitava o deslocamento no trabalho para registrar diversas situações que posteriormente serviriam de referência para sua criação; abrindo horizontes inexistentes, elaborando miragens de passagens e paisagens clandestinas.

A Zona Oeste na Zona Sul

É curioso pensar no quanto a estética etérea que caracteriza a produção de Tainan diverge daquilo que se espera de um artista que vem de Senador Camará. Isso nos leva a crer que essa exposição acaba se configurando como um exercício de realocação de preconceitos além de demonstrar a intenção de expandir e atingir não só pessoas que estão acostumadas com o ambiente de galerias e museus. A proposta de Tainan é que outros ‘crias’ entrem e se identifiquem.

As obras contaminam a arquitetura do espaço e ocupam inclusive a área externa onde pneus de graciosas cores assentam o espírito da zona oeste nos territórios da zona sul. O multicolorido se derrama até as janelas que aqui ganham ares de vitrais eclesiásticos, em analogia ao fim de tarde da zona oeste carioca. O chão coberto pela mesma grama sintética que verdeja o chão do baile em noites de gala, ajuda a dar a sensação de ressignificação dos materiais para outros propósitos.

A última sala da exposição desperta o sentido de templo, um abrigo de espiritualidades coloridas e abstratas que o artista interpreta como uma louvação às forças que sustentam a catedral do funk, o baile. Ao concretizar sua devoção pela sonoridade das ruas, o artista germina a ideia de ‘Dubismo’, um conceito difundido pelo músico Chico Science que, inspirado pela filosofia das culturas dos sound systems das favelas jamaicanas, viu no Dub – gênero de música eletrônica que surgiu do reggae no final da década de 1960 e no início da década de 1970 – a possibilidade de pensar e criar a partir da reutilização e reciclagem da produção musical local. Para Tainan, o Dubismo é um processo de remixagem da imagem real para algo idealizado, uma força que transmuta a materialidade através de
efeitos de edição, um movimento que tempos depois viria a originar a cultura do baile funk carioca.

A representação espiritual dos bailes funk surge nas pinturas como uma espécie de forma- pensamento – uma consciência espiritual que se intensifica quando intuída conjuntamente por várias pessoas. Os gestos do artista carregam essa simbologia da energia coletiva, e nos transporta para uma dimensão inquietante onde objetos ordinários são reapropriados para estabelecer uma visão eletrizante de um sertão que se reinventa cotidianamente. A mesma literatura de cordel que inspirou o filme de Glauber Rocha parece inspirar também Tainan Cabral que reimagina a peleja entre deus e o diabo nas encruzilhadas do sertão carioca. O cenário proposto é o nascer do sol que transita o dia de sábado para o domingo, enquanto os ‘cria’ tomam whisky e curtem um funk proibidão antes de encarar mais uma semana que se anuncia. Para o artista, deus é o próprio sol que atravessa as lonas e as malhas que ambientam o templo: o baile funk da comunidade, lugar de experiências transcendentais e efêmeras felicidades, campo gravitacional de libertação, que proporciona a quem ali estiver, uma realidade onírica e alucinante que eflui revoltas e desejos radicais.

25.04.2023

Labirintos vivos

Texto Ariana Nuala

Há uma inquietude na maneira a qual Ana Clara Tito se relaciona com a imagem fotográfica. É possível vermos borrões de paisagens, fragmentos de distintos corpos, entre outras camadas que anunciam uma aparição prestes a desaparecer, correr ou até mesmo fugir e ir de encontro a outras habitações, sejam íntimas ou públicas.

Tito tem um interesse em montar fotografias que denunciam os artifícios do ato de fotografar, recriando uma faceta múltipla ao enxergar as imagens: é concebível imaginar e percorrer diferentes espaços/tempos no mesmo momento ao invés de se fixar em um ponto.

A insuficiência na fotografia em revelar a totalidade da atmosfera a ser capturada, parece ser mote excitante para Tito, onde sua pesquisa se coloca na complexidade da tradução do diálogo entre presenças espectrais e corpóreas. Tito não reduz seu acervo fotográfico a exposições iconográficas, mas cria um jogo a partir da ilusão de um estado fixo, ou seja, quando utiliza o cimento como matéria principal de impressão de suas fotografias, reconstrói um estado sólido para memórias, mas passíveis de infiltrações, permeabilidade, quebras e torções e que na composição da obra se encontram com outros elementos como ferro, plástico e tecido.

Neste sentido, as foto-esculturas, como são chamadas por Tito, são obras que dinamizam a relação entre a fotografia e o espaço, acentuando aqui o fazer escultórico atrelado à desobediência de permanecer em movimentos de transformação. Portanto, um labirinto vivo, seria aquele que se move no entrelaçamento dos caminhos, entre emaranhados que muitas vezes não distinguem a vida em dicotomias.

Em mim, houve inicialmente uma incerteza, se o trabalho de Tito se traduziria na fotografia ou na escultura, até reconhecer que, na verdade, ele se discorre em ambos simultaneamente, e também os extrapolam. Ao chegar perto de cada foto-escultura, é possível ver fragmentos de cenas fotografadas, vi: retalhos de colchão, pisos de banheiros ou quartos, janelas, prédios, etc., esses ambientes que percorrem a obra de forma entrecruzada, não estão para serem vistos com clareza, e sim são condensados à uma forma indefinida. O cimento, aglomerado que religa esses lugares, funciona assim, quase como uma areia movediça ao puxar para o fundo corpos com menores densidades, criando dificuldade entre os limites do corpo engolido e o corpo que engole, aquele que abraça e o que escapa.

Um labirinto vivo, aqui, diferente de jardins luxuosos – muitas vezes podados e pomposos, onde ainda é possível encontrarmos um meio, um fim ou um início – é um espaço que reconhece sua superfície terrena, esta camada que envolve diferentes seres em distintas situações, que se transforma ao ser atravessado. São terrenos instáveis que desafiam o movimento, fazendo com que quem o atravesse saiba conduzir seus estados. Por exemplo, na areia movediça é necessário ficar parado para que o corpo possa flutuar frente à proporção de peso que é causada com o encontro desse tipo de solo. Então, quais são os exercícios de desestabilidade e também de remodelação, para penetrar estes lugares?

Acredito que o trabalho de Tito evoca essas imagens ao combinar elementos encontrados em escombros de construções, como metais oxidados, vidros e pedaços de barro, juntamente com sua coleção de objetos pessoais. Cada elemento então ensaia sua dança frente à contaminação entre um e outro, sua rugosidade diante da massa cinzenta que liga seus corpos, criando espaços também para a performatividade, seja em suas pausas ou continuidades.

Nesta exposição, as foto-esculturas estão relacionadas aos tampos de vidro canelado que foram coletados por Tito durante andanças nas ruas da cidade de São Paulo. O vidro denota em sua aparência translúcida uma delicadeza que contrasta com as obras. Estas, em sua vida labiríntica, refutam a nitidez, não permitindo ver o que está por trás, mas sim imaginar o percurso e as camadas não visíveis que esses corpos carregam em todos os tempos.

A forma indefinida de um labirinto vivo marca a compreensão de seus trânsitos, as relações entre corpos e gestos, incluindo atalhos, fugas, desistências e recomeços. Assim, ao também andar pelo labirinto – seja na cidade em que nasceu, o município de Bom Jardim, no lugar onde estudou, a capital do Rio de Janeiro, ou em lugares que transita, como São Paulo – Tito investiga a simultaneidade do seu corpo, sendo ele um corpo diaspórico, transgredindo limites e ensinando-o a mover-se, assim como fazem as fotoesculturas.

Para mim, o labirinto de Tito começa em suas caminhadas para a coleta. Sabemos que há algo que nos impulsiona a nos relacionarmos e, sem antes muitas vezes percebermos o que é, fazemos e nos modificamos naquele contato. Para agirmos a partir de um desejo desconhecido que se desdobra entre vários, tocamos, sentimos e posteriormente entendemos ou não. Mas existe algo que nos impacta e nos fala intimamente sobre o imediato, assim neste instante algo é capturado.  A captura, porém, se faz ilusão, como uma poeira fina, que dificilmente é retida com as mãos.

Diante da impossibilidade de uma existência sem porosidade, Tito encontra-se com as palavras de Byung-Chul Han, que nos recorda a presença de um pássaro negro que o atravessa, deixando-o em meio à paisagem. Neste fluxo, Tito, nos conduz a uma saída de um uso contínuo de uma imagem em completa nitidez, permitindo-nos adentrar na complexidade que se refere aos mundos.

Brincar com essa dimensão seria extrapolar os limites, contagiar-se, afinal quando o labirinto é vivo, ele não se funde com o que atravessa?

 

 

1 Louvor à Terra : uma viagem ao jardim / Byung-Chul Han; com ilustrações de Isabella Gresser; tradução de Lucas Machado. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2021.p. 127

10.02.2023

Corpos líquidos, almas sólidas

texto Catarina Duncan


“No início éramos todos e todas o mesmo ser vivo, compartilhamos o mesmo corpo
e a mesma experiência, desde então, as coisas não mudaram tanto, multiplicamos
as formas e maneiras de existir, mas ainda hoje somos a mesma vida. Há milhões
de anos essa vida transmite-se de corpos em corpos.”
(Emanuele Coccia, Metamorfoses, 2020, p. 13).

 

‘Corpos líquidos, almas sólidas’, atravessa fundamentos da natureza, de pesquisa científica e de formas de encantamento. Ampliando nosso olhar sobre a noção de matéria, compreendemos que aquilo que parece fixo, rígido e estável se apresenta leve, poroso e vulnerável.

Essa exposição trabalha com três eixos – matéria, ideia e invisível – em busca de uma compreensão da condição humana como parte de um ecossistema múltiplo e mutante. As obras de Romain Dumesnil operam entre o contemporâneo e o ancestral, entre o metal e a argila, entre o algoritmo e a escolha, para desenhar, sonhar e imaginar novas paisagens. As obras se reúnem enquanto paisagem, um conjunto que se completa formando um território coletivo.

A combinação desses eixos comenta as possibilidades de produção de vida, em uma pesquisa contínua sobre formas de criação. A série ‘Labirinto’ é composta por pinturas feitas de misturas de minerais a partir de diretrizes algorítmicas de variações do campo magnético. Esses fatores invisíveis que nos atravessam estão aqui corporificados enquanto matéria.

Duas pinturas inéditas, intituladas ‘Apicum’, feitas com argila e pigmentos natu-rais, são também apresentadas apontando os princípios da criação. Em diversas cosmologias, o barro é reconhecido como a primeira forma de vida, participan-do da própria elaboração da forma humana. Ao criar essas imagens com argila, utilizando a terra como tinta, Dumesnil remete às formas primordiais de transformar matéria. É a primeira substância que nos dá forma e nos possibilita exis-tir no mundo material. Apicum significa brejo de água salgada em tupi guarani, e faz referência a uma planície capaz de absorver e estocar gás carbônico.

Estamos diante de um fenômeno planetário de mudança climática e estrutural, desde que nos distanciamos da ideia de ‘natureza’. Ao compreender que somos natureza e fazemos parte de sistemas coletivos podemos perceber essa exposição como um diálogo, entre seres, que se afeta e transforma.

As obras ‘Lapso’ e ‘Desvio’ são conversas que estruturam duas pedras vulcânicas magnetizadas que levitam. Enquanto ‘Elevação’ também propõe uma negociação com a matéria, nesse caso o gás hélio, reconhecendo a materialidade invisível de um dos elementos químicos mais presentes no universo. Não se trata de um desafio à natu-reza mas uma troca, nos cabe aqui perceber e aceitar que não controlamos nada, mas vivemos em relação a tudo.

A citação acima, do livro ‘Metamorfose’ de Coccia nos situa em relação a essa multiplicidade a partir da perspectiva de que somos todos feitos da mesma matéria. Esse momento primordial compartilhado, conecta essa exposição, que dá forma ao invisível por sonhar paisagens inexistentes. A obra ‘Fenda’, feita por um galho de alumínio que arranha a parede, funde o corpo vegetal e mineral, mais uma vez, di-luindo a separação entre natureza e cultura, entre o que somos e o que produzimos.

A mudança climática não acomete a todos os povos da mesma maneira, não experi-mentamos o mundo da mesma forma. De acordo com Bruno Latour, nosso sentido de identidade se dá falsamente por uma defesa de fronteiras: “Do solo, o Terrestre herda a materialidade, a heterogeneidade, a espessura, a poeira, o húmus… O solo, no novo sentido proposto, não pode ser apropriado. Pertencemos a ele; ele não pertence a ninguém.” O pigmento roxo exposto em ilhas no chão da exposição nos conduz em um movimento coreográfico, onde nem todos os caminhos dão passagem, nem todos os corpos têm a mesma experiência e o solo passa a ter agência sobre nós.

A sensação de estar sendo conduzido e encaminhado por uma topografia nos atraves-sa para perceber, mais uma vez, que nem sempre teremos controle. Similar a sensação da obra ‘Dança’, em que larvas são posicionadas em um movimento coletivo.

O solo estável do holoceno não está mais garantido. A obra ‘Floresta psíquica’ emite uma fumaça que sai das frestas do chão, emanando o vapor de plantas com quali-dades psicoativas que podem ser utilizadas medicinalmente para cura ou adoecimen-to. Ao adentrar esse espaço, seu corpo será afetado.

O que a catástrofe ambiental em curso nos coloca como desafio é: como nos virar com os elementos que temos e não mais insistir na lógica de fuga. Buscando uma existên-cia qualificada, em relação à matéria e aos seres com os quais convivemos. As obras em ‘Corpos líquidos, almas sólidas’ são como um farol para iluminar aquilo que já está acontecendo e muitas vezes não percebemos. Além dos nossos campos de visão ativamos um campo sensorial e sensível que nos relembram que a vida não é estática, não está “finalizada”, e por isso, todo fim faz parte de um início.

Bibliografia:

– Coccia, Emanuele. Metamorfoses, ed. Dantes.

– Lima Barreto, João Paulo. WAIMAHSÃ: Peixes e Humanos ed. UFAM

– Latour, Bruno. Onde Aterrar. ed. Bazar do Tempo

– Ferdinand, Malcolm. Uma ecologia decolonial. ed. UBU

 

25.01.2023

Palimpsesto Sentido