Anna Franceschini, Gustavo Torres, Pablo Accinelli
YOU MUST TRUST US!
curadoria de Bernardo de Souza
Rio de Janeiro | 09 Junho — 09 Julho 2016
Anna Franceschinni
Before They Break, Before They Die, They Fly!, 2014
filme de 16mm transferido para vídeo HD, colorido, mudo
5' 40''
Bernardo José de Souza
Em minha cápsula modernista, de onde avisto o mar, convivo com um número bastante limitado de objetos e aparelhos cujas funções conheço em detalhe – mesmo porque me são essenciais -, embora sequer possa suspeitar das histórias e do passado que me escondem sob mutismo e austeridade aparentes – mas vale frisar, tão só aparentes. Há algo de misterioso, até mesmo aterrador, eu diria, na vida dessas criaturas domésticas das quais nos cercamos por todos os lados, e que parecem conceder sentido e propósito às nossas rotinas e tropeços diários, mas também às nossas mais recônditas e vergonhosas memórias. Um grau de intimidade umbilical vincula o homem a esses seres inanimados, porém dotados de uma alma secreta, que a eles atribuímos um pouco por orgulho e por desejo próprios, e um tanto devido à familiaridade com suas penosas e estáveis presenças em nossas vidas. Vez que outra, os dispensamos sem qualquer piedade, ou mesmo com profundo pesar, reproduzindo a dinâmica afetiva que adotamos nas relações com amigos, amantes, familiares ou colegas de trabalho.
Entretanto, os objetos parecem investidos de memória, carregando em si uma substância semelhante àquela que nos torna humanos; são receptáculos de desejos, raivas, ansiedades, angustias, pressas, depositários de uma fé maior – embora raras vezes correspondam a nossos anseios animistas. Em dados momentos, chego até mesmo a acreditar que se tornam nossos mais vingativos algozes.
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Nesta casa de azulejos avermelhados, muitas esquadrias e poucos cômodos, reuni um pequeno grupo de objetos que operam por conta própria, transitam pelo mundo à revelia de suas vontades, e assumem aparência e finalidades diversas daquelas para as quais foram originalmente fabricados. São tratados aqui como obras dotadas de plasticidade, revelando-se parcialmente, e apenas parcialmente, cabe dizer, uma vez que, sempre que observados com atenção – e isto varia de sujeito a sujeito -, ganham contornos próprios, novos passados e propósitos insuspeitados.
Há algo de místico ou misterioso na existência dos objetos; são capazes de ascender à vida, mesmo depois de mortos e esquecidos, como num passe de mágica. Revelam e escondem, a um só tempo, dimensões secretas de suas estranhas presenças no mundo. São reais e virtuais; funcionais, quando instados ao trabalho, e disfuncionais, sempre que postos de lado. Em seu conjunto, em seu arranjo no espaço, entabulam uma conversa que tão-somente podemos intuir, ao lhes atribuir o condão da verbalização silenciosa. Desconfio, às vezes, ao apagar as luzes e me recolher ao sono, que permanecem em vigília constante, sem dormir, a conversar entre si, desfrutando do curto espaço de tempo pelo qual estarão juntos – tudo isso graças à oportunidade que lhes foi garantida por mim, curador desta exposição. Seguem vivos, por vezes furtivamente engastados nas memórias daqueles que com eles conviveram, mesmo que apenas por um lapso, por um instante fortuito capturado na pressa de chegar a algum lugar/lugar algum.
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Há um lustre de cristal nesta exposição, a tilintar silente, o qual jamais se deixará ver por inteiro, apenas como ilusão; há também uma jarra, esta de vidro bruto, cuja transparência nos autorizaria a enxergar seu conteúdo líquido, mas que, todavia, insiste em ser continente de nada, em existir apenas como exercício provocador de metalinguagem, uma dentro da outra, pois obras de arte e objetos também nos pregam peças – aliás, uma de suas funções quase humanas. O vidro tem essa magia, do atravessamento pela visão, de ser raso e profundo, frágil e denso, natural como a paisagem que vejo de minha janela e artificial como a prótese de um amigo meu.
Mas há também uma corrente de energia que circula invisível pelo organismo desta e de quase todas as casas, ora iluminando, ora existindo, apenas, como tantas outras coisas no mundo que apenas existem, sem delas nos darmos conta.
– Mas como nós, humanos, somos profundamente limitados em nossos cinco sentidos!
– Quantas coisas sucedem no universo prescindindo de nossa prévia e desprezada autorização?
Existem, nesta casa, tecnologias que de nada servem, ou que deixaram de nos servir com o tempo, embora sigam operantes, vivas, atuantes até. Existem, no mundo, sons não audíveis e um sem fim de segredos criptografados – embora não haja código que os possa revelar, pois que existem à margem da nossa percepção, dos nossos saberes sabidos ou não sabidos, e da linguagem, ao menos daquela que fomos capazes de articular. Entre os objetos, há o homem, sempre: como mago, como presença real ou fantasmagórica, como memória, como assujeitado pelos diversos sistemas ou como agente de transformação.
Truques, clacks, vrooooms… Abracadabra, et voilá: folhas ao vento, um novo mundo se descortina por detrás do leque de um baralho. Sorte ou acaso, “aqui estamos nós, turistas de guerra”.*
Release
YOU MUST TRUST US! aborda a intimidade de objetos e aparelhos domésticos e sua afinidade enigmática com as pessoas. A curadoria é de Bernardo José de Souza, que cria diálogos entre criaturas inanimadas e nossas rotinas. A exposição apresenta três artistas de diferentes nacionalidades com esse universo imaginário comum: Anna Franceschini (Pavia, Itália 1979, vive e trabalha em Milão), Gustavo Torres (Rio de Janeiro, 1987, vive e trabalha no Rio) e Pablo Accinelli (Buenos Aires, 1983, vive e trabalha em São Paulo) . Os artistas articulam sobre o homem e sua necessidade como agente de transformação dentro de um cotidiano perdido, acarretando a alusão do readymade a partir do objeto como mistério; são funcionais, quando instados ao trabalho, e disfuncionais, sempre que postos de lado. A mostra percorre uma atmosfera fantasmagórica despontando a relação do indivíduo com o objeto, do objeto com o espaço, e finalmente do indivíduo no espaço com o objeto inserido; há uma teatralidade nessa analogia. A galeria situada em Botafogo, num casarão antigo que já foi um dia lar de uma família– referência essa que trouxe ao curador o diálogo entre os artistas e obras: há material, memória, ficção; a necessidade implícita de investigar a alma secreta do objeto habitual.