Eustáquio Neves
CORPO E ALMA
texto Eder Chiodetto
Rio de Janeiro | 17 Novembro 2022 — 03 Fevereiro 2023
texto Eder Chiodetto
Eustáquio Neves tem a natureza rebelde dos artistas que ao se apropriarem de uma linguagem artística para sua expressão, o fazem de forma a desrespeitar regras previamente impostas com o intuito de expandir as possibilidades da mesma. Dessa forma, no interior de seu criativo laboratório de experimentações, ele contribui de forma potente para que o fotográfico ganhe renovadas configurações.
Logo, Eustáquio é um artista que não apenas utiliza o repertório da linguagem para potencializar seu discurso e sua poética, mas age como alguém que reinventa a própria linguagem, ampliando seus limites, e deixando tal experiência como um precioso legado para a história da fotografia.
Grande parte da obra de Eustáquio se dedica a refletir sobre o racismo estrutural que segue ecoando, até hoje, de forma perversa na sociedade brasileira e mundial desde o malfadado e violento advento da escravidão imposta aos povos africanos. Os livros de história que circulam entre estudantes do ensino fundamental, em geral, amenizam e não se aprofundam no tocante às atrocidades perpetradas contra as pessoas escravizadas no Brasil. Desde os anos 1980 a obra de Eustáquio se tornou pioneira em combater essas falsas verdades que se perpetuam.
Suas experimentações que transformam a superfície do suporte fotográfico em intrincadas camadas, podem ser lidas como uma estratégia de desmonte do processo histórico de construções de narrativas ideologicamente orientadas e contadas sempre do ponto de vista de quem detém o poder.
Essa mostra realizada pela galeria Cavalo traz alguns ícones pontuais da produção do artista entre os quais se destacam imagens das séries Objetificação do Corpo. Foram imagens de mulheres despidas, que ele estudou em pinturas renascentistas, que levaram o artista a pensar nos usos mercadológicos do corpo feminino no mundo atual, invariavelmente objetificados e sexualizados pela publicidade. Utilizando uma modelo negra, uma exceção nessas campanhas, Eustáquio tece um comentário crítico necessário que amalgama o machismo e o racismo na mesma obra, emulando cicatrizes, grafias desconexas, cartas de alforria e anúncios de venda de corpos negros.
A mostra ainda traz obras das séries Máscara de Punição e Arturos. Na primeira o artista utiliza retratos de sua mãe, Dona Tereza, para criar entre imagens em negativo e positivo um emblema sobre o silenciamento imposto às populações negras até os dias de hoje.
Para a realização de Arturos, Eustáquio conviveu com remanescentes de um quilombo, em Minas Gerais, para criar uma das suas séries mais envolventes, nas quais entre múltiplas camadas podemos entrever a força, a resiliência e a beleza da cultura afro que seguiu forte e pulsante, à revelia de todas as tentativas históricas de apagamento, em manifestações como a Congada.
A obra singular de Eustáquio Neves nos leva à reflexão de que para a arte conseguir mover mentes e corações, demovendo falsas verdades cristalizadas, é muitas vezes necessário que o artista, por meio de suas experimentações, promova algumas implosões no interior da própria linguagem artística, para ampliar suas fronteiras e gerar renovados pontos de vista.