Thiago Martins de Melo
Rasga Mortalha
curated by Germano Dushá
Rio de Janeiro | March 28 — June 15, 2019
Thiago Martins de Melo
Xoroquê, 2019
oil, acrylic, polyester filler and polyurethane on wall
400 × 950 cm
Germano Dushá
Rasga mortalha: o vulto branco da coruja no céu do Norte traz no rastro o grito estridente. Quem viu e ouviu, já sabe: a morte logo vem. Suindara apavora o olho, dói o ouvido, implacável agouro, corta o pano do febril. Carrega consigo o signo da morte. Neste chão aqui, então, deve ser o anúncio das caravelas, dos caveirões. Da brutal desigualdade. Da varredura do contraditório. Do anti-intelectualismo salivante, do conservadorismo medieval, dos massacres organizados. De tudo aquilo que pretende erradicar as formas de vida. No entanto, o que oprime deve aguardar seu contraponto. Leis injustas devem esperar as desobediências, e as forças que submetem devem esperar corpos insubmissos. É das insurgências e reinsurgências que virá o golpe principal, messiânico, radical.
Rasga mortalha é o vetor metafórico para pensar e transcender uma visão fatalista da história do Brasil. Numa narrativa tão carregada quanto cortante, a fúria cosmológica que surge dos desenhos, pinturas e esculturas funde acontecimentos históricos com memórias e imaginações pessoais para repensar os fatos, redistribuir os papéis e deslocar os protagonismos. A epistemologia humana se dobra, fazendo emergir novos atores, ou melhor, tornando possível que assumam seus devidos lugares, conforme correm os desejos.
Com o pulso da tradição popular o artista contorce os séculos, atracando-os entre si, comprimindo-os até se banharem com as cores mais fortes uns dos outros, de modo a confundirem-se numa voragem enlouquecida, que faz rodopiar “as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas.” Ao som de tambores e fuzis, muitos gestos jorram para dar conta da violência material que desnuda a crueza da vida, mas também da ascese espiritual que aponta para o infinito. Quilombolas, índios, sertanejos, favelados, homossexuais, transexuais, artistas e todos aqueles que não encontram espaço num projeto único de Estado-nação sofrem com contínuas investidas genocidas, mas firmam ponto comum na energia universal que mobiliza as lutas do povo, as escolas da rua, as práticas da selva, os esoterismos cotidianos, os gêneros e sexualidades desviantes, sempre prontos para vir à tona de diferentes formas, em diferentes lugares e a qualquer instante. Há combate, mas há, também, potência para se viver livremente; arte, comunidade, ritual xamânico, festa, torso descoberto, transa com beijo, com abraço, com mijo. O devir-animal e a antropofagia do sujeito que virou onça, do mestiço que virou índio, e que agora saboreia uma perna, depois um pé, um braço. Do homem barbudo com seios e vagina, da mulher com seios e pênis, se comendo um ao outro. Carnes deliciosas.
Momento ético decisivo: “Esta homenagem é uma atitude anárquica contra todos os tipos de forças armadas: polícia, exército etc. (…) pois reflete uma revolta individual contra cada tipo de condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão.”
As referências são muitas. Da poesia de Gonçalves Dias ao gesto de Tuíra Kayapó, de Canudos e Contestado às ocupações urbanas, do messianismo de Glauber Rocha ao conceito de necropolítica do camaronês Achille Mbembe, da mitologia Tupinambá à atual luta do povo Gamela no Maranhão, da literatura de cordel às guerrilhas armadas nas selvas latino-americanas, da memória de Dina do Araguaia às metamorfoses do Subcomandante Marcos. Num só tiro vamos da pedra à democracia, das bandeiras à Brasília, do militarismo aos transes esotéricos, das células do cérebro ao olho do cu. Powermix, godzilla, megazord. Faz barulho enquanto anda. Urra sempre que fala. Os olhos reviram, respira fundo, usa todo o corpo, forçando a garganta num grito mais alto que o da coruja para recitar o verso atribuído a Lampião: “Meu rifle atira cantando/ em compasso assustador / Enquanto o rifle trabalha / minha voz longe se espalha / zombando do próprio horror”. Ou do que canta I-Juca-Pirama: “Meu canto de morte, / Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas, / nas selvas cresci, / Guerreiros, descendo / Da tribo Tupi”.
A morte como morte e a morte como vida. Nenhum sangue escorre em vão: morre um, nascem dois. É a morte que irriga o chão.