Cavalo
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05.05.2025

Tem índio me espiando, dizia meu pai

Silêncios da história: meus olhos nos olhos da mata

Josely Carvalho

 

 

Quando eu era criança, meu pai me contava que havia índios espiando na sua fazenda de café. Ele falava baixo, como quem revela um segredo antigo, um mistério que vinha da mata fechada. Eu imaginava homens silenciosos, camuflados entre as folhas, sentados nos galhos mais altos das árvores, observando tudo sem fazer barulho. Às vezes, no vento, achava ouvir o eco de um canto distante. Mas nunca fui até lá, nunca vi nada—só ficava a fantasia, alimentada pelo tom de voz do meu pai, meio receoso, meio fascinado. Minha mãe não gostava de mato, então a fazenda ficava longe, e os índios, mais longe ainda, só nas histórias e nos artefactos que meu pai trazia para mim.

Anos depois, descobri que aquela conversa tinha um fundo de verdade triste. Os Xetá, que sempre viveram naquelas terras, não sumiram por acaso—foram varridos pelo ganância das companhias colonizadoras, pelos latifundiários com apoio dos governos do Paraná. As companhias chegaram, derrubaram e dividiram a floresta neotropical, e os Xetá, sem território e sem proteção, viraram pó na história oficial. Quando entendi isso, senti um frio: aqueles “índios espiões” que eu inventava na infância eram um resto de memória, um fantasma que meu pai, sem saber direito como, tentava não deixar morrer..

Essa descoberta me levou a uma jornada entre lembranças, arte e ativismo. Saí de São Paulo para Nova York em 1964 deixando esta pequena coleção de objetos, mas levei comigo o desejo de desvendar essa fantasia infantil. Em 1995, enquanto moldava o barro de Cunha, para a Memorial Armênia , instalação permanente no Metrô de São Paulo, comprei um sítio e plantei quatrocentas araucárias—uma tentativa de regenerar não só a terra, mas algo que havia sido apagado nas memórias. Logo depois vendi, segui em frente, mas a sensação de incompletude ficou.

Anos mais tarde, soube que, dos Xetá, oito crianças haviam sido raptadas pelos colonizadores e crescido longe de sua gente. Aquilo me cortou o peito. Lembrei do colo do meu pai, das histórias fragmentadas que ele me contava sobre o Brasil, e senti que meu trabalho—as instalações, as esculturas, os gestos quase inconscientes—era uma forma de buscar restituição. Não só pelos Xetá, mas por tudo o que foi roubado: terras, árvores, histórias, identidades. Hoje, minha arte e o ativismo Xetá se misturam. É uma luta pelo lugar que vai além do meu corpo, uma tentativa de reescrever—nem que seja simbolicamente—o que foi apagado. E, no meio disso, ainda escuto o eco daquela voz infantil, imaginando os olhos na mata, tentando entender o que, afinal, ficou para trás.

 

 

 


Memória, história, responsabilidade: os gestos renitentes de Josely Carvalho

Dária Jaremtchuk

 

 

Josely Carvalho tem dividido sua vida entre os Estados Unidos e o Brasil, uma dualidade que se reconhece em sua produção artística. Nesse trânsito constante entre línguas e culturas, a artista explora temas como memória, exílio, violência e as multifacetadas dimensões da experiência feminina. Engajada em temas sociais e políticos emergentes, tem trabalhado com diversos suportes e mídias e também explorado o universo olfativo.

A história desses trânsitos e desterritorializações aponta, paradoxalmente, para a memória de um retorno a um lugar e a uma terra, em que a artista funde sua história à história pregressa do Brasil. Sua trajetória em direção à história do povo Xetá não se inicia por interesse antropológico ou programático; em vez disso, emerge das memórias familiares, tecidas intrinsecamente à volta da figura paterna. O gatilho para esse processo ocorre durante uma viagem ao Brasil, ainda na década de 1980, quando a artista se depara, em meio aos pertences da família, com um manuscrito assinado pelo antropólogo José Loureiro Fernandes, que era seu primo. A descoberta do texto lhe desperta o interesse pelos Xetá, um grupo indígena cuja história permanecia envolta em névoas para ela. Simultaneamente, chega-lhe a história de uma mulher Xetá, sobrevivente, que teria sido confinada em um manicômio. A narrativa – embora posteriormente desmentida – sugere uma alegoria do alheamento que a estimula a conhecer mais sobre essas histórias.

De volta aos Estados Unidos, a artista procura por textos de Loureiro Fernandes na biblioteca do Museu de História Natural de Nova York, busca que se mostra infrutífera. Contudo, sabe da existência de um outro livro sobre os Xetá – da autoria de Vladimir Kozák –, retido no gabinete do diretor da instituição, inacessível à consulta e à reprodução. Coincidentemente, Josely consegue adquirir a obra de Kozák na livraria do museu.

O livro de Kozák age como um catalisador, despertando suas memórias de infância. A relação da artista com essa narrativa é marcada pelas origens paranaenses de sua família, apesar de seu nascimento em São Paulo. Emergem as férias em Curitiba e, sobretudo, a curiosidade provocada pelos artefatos indígenas presenteados pelo pai, acompanhados de histórias sobre um grupo indígena que se escondia na mata para escapar à violência colonizadora. A frase paterna, proferida no início da década de 1950 – “Tem índio me espiando” –, ecoa como um prenúncio dos temas que permeiam suas obras. A ausência de contato direto com a fazenda do norte do Paraná onde o pai era cafeicultor, motivada pela aversão da mãe ao que chamava de “mato”, paradoxalmente intensificou ainda mais o seu interesse em conhecer esse povo. O descarte da coleção de artefatos indígenas pela mãe, após a mudança para os Estados Unidos, representa um corte simbólico com o passado, cuja marca já era a ausência. De alguma forma, o livro de Kozák dá forma ao vazio da lembrança. E essa busca pelas raízes familiares a leva a um encontro com as memórias das poucas crianças Xetá que sobreviveram ao extermínio. Relatos dessas crianças tornam-se um elo entre um passado de extermínio e exploração econômica e a possibilidade de resgatar a história do povo Xetá, à beira do esquecimento. Ao conhecer melhor essa história, a artista posiciona os conflitos em seus trabalhos artísticos como um ato de resistência ao esquecimento e um engajamento em um ativismo contemporâneo.

Sabe-se que empresas de colonização, com apoio do Estado, exploraram as terras originalmente cobertas por florestas neotropicais no noroeste do Paraná. Essa área foi a última do estado a sofrer o processo de colonização a partir da década de 1940, levando a região a um desastre ecológico. A destruição das florestas e o desgaste da camada de terra roxa sobre a base de arenito do solo pelas plantações inadequadas transformaram a região em terras desertificadas, com áreas de erosão, que acabaram convertidas em pastagens para gado. A destruição da vegetação original impactou profundamente o povo Xetá, que, sem abrigo e alimentação, enfrentou dificuldades para manter seu modo de vida, baseado na caça e na coleta de produtos naturais. A devastação florestal, aliada à violência perpetrada por fazendeiros, resultou em um massacre gradual, provocado pela fome e por doenças. Às chacinas genocidas, seguiram-se sequestros de crianças, dispersadas e levadas para viver em famílias que as submeteram a processos de aculturação. À violência do colonialismo mortífero, que ocupou as terras dos Xetá e as transformou em fazendas de café, somaram-se os desmandos da ditadura militar, período no qual os conflitos acabaram por quase exterminar os Xetá. Sob novas ameaças, como as do Marco Temporal, após décadas de separação entre os poucos sobreviventes, esse povo busca restabelecer suas conexões, reivindicando o reconhecimento de sua história e a reparação que a sociedade lhe deve.

A mostra Tem índio me espiando, dizia meu pai é uma reorganização de trabalhos sobre os Xetá anteriormente expostos no Maryland Institute College of Art, Baltimore, em 1994; na Tyler School of the Arts, na Filadélfia, em 1998; no 11th International Symposium on Electronic Art, em Nagoya, no Japão, em 2002; e no Centro Cultural da Caixa, em Brasília, em 2005. A contínua revisão da temática dos Xetá sublinha a duradoura importância da questão indígena. Cada nova apresentação das obras ligadas aos Xetá implica a integração de novas peças e a execução de novas reorganizações espaciais, em um quebra-cabeça infinito, pois impossível, de reconstituições de um passado abruptamente silenciado. No caso de Tem índio me espiando, dizia meu pai, exposta na Cavalo em 2025, a artista enfrenta com mais abertura indagações sobre a participação do pai num processo histórico-econômico. Isso gera sentimentos ambíguos, pois a figura paterna persiste na memória afetiva da artista como imagem da infância. Essa inquietação face a um passado ao mesmo tempo encantador e assombrado desperta na artista a vontade de se aproximar dos processos de reparação dos Xetá em curso, suscitando, então, inúmeras perguntas. Como reescrever a história e, nela, nos reinscrever sem subterfúgios e autoenganos? Como, a partir dos registros cartoriais e cartográficos oficiais, entrever o que esses documentos relegaram ao esquecimento? Como ver, no mapa, o mapa do que não foi cartografado; no deserto das pastagens e lavouras, as florestas que não foram preservadas; no olhar colonizador, os olhos dos que não foram nomeados pela história oficial? Em suma, como olhar para a nossa herança de colonização sem ser petrificado por essa Medusa?

Essa teia enervada de imagens, memórias e documentos pode ser reelaborada de vários modos, à maneira seletiva da memória. Josely Carvalho escolhe o modo mais árduo e, por isso, mais corajoso. Antes de edulcorar as memórias da infância, a artista prefere atritá-las às rebarbas e sobras, aos resquícios etnográficos que, do passado relegado ao fundo do esquecimento, nos chegam como aparições renitentes.

Exibindo-se também gravuras produzidas em outros momentos da trajetória da artista, no conjunto exposto na Cavalo, em 2025, sobressaem aquelas de pequenas proporções cujas imagens dos Xetá foram retiradas do livro de Kozák. Nesse processo, a artista fotografou as imagens do etnógrafo, transferiu-as para o fotolito e, em seguida, para a tela serigráfica. Primeiramente publicados em preto e branco, esses registros originais foram impregnados de cores e reorganizados no papel amate pela artista. Esse papel, que remonta à tradição pré-colombiana mesoamericana, foi adquirido por Josely em uma viagem ao México e utilizado na série Xetá. Proveniente de cascas de árvores moídas, o suporte artesanal de superfície fibrosa, textura áspera, tramas e linhas descontínuas, bordas e rebarbas rústicas parece oferecer um ambiente adequado às imagens apropriadas da publicação de Kozák. Como nesse processo a artista utilizou um rodo para aplicar as tintas às imagens na tela serigráfica, o resultado confere às gravuras características semelhantes às da pintura. Na maior parte das gravuras, os rostos e corpos coloridos se destacam; mas, como eles foram descentralizados pela artista, o espaço vazio não dispõe as figuras em um novo equilíbrio compositivo. As silhuetas, no limite da desaparição, teimam em tomar forma, emergindo da textura terrosa do papel. Reivindicam sua aparição, marcada pelo gestual da artista que os assinala e lhes reforça a existência.

Josely também transpôs para algumas de suas gravuras animais abatidos, imagens de fragmentos de asas e penas de pássaros, ninhos, pequenos ossos e toras de madeira cortada. Se para a ciência os vestígios arqueológicos suscitam reconstituições, os resquícios trabalhados pela artista se mostram insuficientes para qualquer recomposição da vida dos Xetá, um povo sem território e apagado da história. Contudo, mesmo diante da impossibilidade de qualquer ambientação, as superfícies de cor bege-dourado do papel amate parecem oferecer lampejos para a imaginação.

Desde muito cedo, Josely trabalha com imagens de pássaros, sendo estes o próprio título de sua primeira mostra individual, com litogravuras e xilogravuras, que ocorreu na Galeria DeArte, em São Paulo, em 1963. Em 2024, a artista traz uma xilogravura, agora intitulada de O pássaro: em silêncio, ela berra (In Silence, She Screeches), produzida no início da sua trajetória. Impressa em papel de textura fina, a ave foi intencionalmente seccionada, ganhando nova vida com as partes reorganizadas sobre a superfície de uma folha de amate. Dado que as dimensões desse suporte são inferiores às da imagem inicial, a firmeza do papel amate oferece sua própria materialidade à preservação daquela forma original, vulnerável, num eco dos processos de apropriação das imagens dos Xetá.

Dos espólios de sua família, a artista guarda o mapa “Planta da gleba número 9”, publicado pelo Departamento de Geografia, Terras e Colonização do Estado do Paraná, que abrangia 12.102,20 hectares. Presente na exposição, esse mapa trata da divisão da região da Serra dos Dourados, organizada em 42 lotes, como se fosse um espaço vazio e disponível para ocupações e explorações. Nele, em tinta azul, foi escrito manualmente o nome dos fazendeiros que ocuparam os lotes da gleba número 9 e, entre eles, se reconhece o nome do pai da artista.

Um mapa de dimensões reduzidas, tendo o estado do Paraná como centro, também se apresenta impresso em papel amate. Próximo à margem superior da imagem, a artista traçou um círculo a grafite e lápis de cor esverdeada, situando a Serra dos Dourados em seu centro. Os nomes de rios e cidades da região, parte da impressão original do mapa, permanecem visíveis. Contudo, o topônimo da cidade de Maringá encontra-se quase apagado pela repetição de círculos a lápis, tanto a grafite quanto em colorido. Talvez em razão desse apagamento a artista reescreva o nome à mão, em grafia ampliada. Gestos de marcar e tomar posse, mas também gestos de lembrar e assinalar, como aquelas pinceladas serigráficas nas gravuras; gestual reiterado e insistente entre a impotência diante do passado e a necessidade de ação. Entre a Serra dos Dourados, Curitiba e São Paulo, a artista repete traços a lápis, linhas que formam uma triangulação, indicando, possivelmente, um percurso – a jornada do próprio pai? Ou um caminho imaginado? O que se destaca em ambos os mapas é o fato de terem sido “corrigidos” à mão, como se as operações impressas nas cartas não traduzissem as narrativas da violência e das demarcações de exploração.

Na memória de Josely, a devastação da floresta pelos colonizadores foi sintetizada na derrubada das araucárias, árvores que representam o Paraná, embora essa espécie não pertença à floresta neotropical da Serra dos Dourados. Como uma forma de reparação, Josely adquiriu terras em Cunha, cidade próxima a São Paulo, e as cobriu com uma plantação de araucárias, ato que reflete a consciência da artista sobre o impacto que a atividade de colonização teve na paisagem e na vida dos povos indígenas. Não parece coincidência que essas terras adquiridas para o plantio, e depois revendidas, se assemelhassem à topografia da própria Serra dos Dourados.

Em A visita dos pássaros, dos peixes e da sagrada tartaruga, produzido em 1994, as imagens das araucárias são parte integrante da narrativa que retrata a destruição implacável da natureza. A história é construída a partir de registros etnográficos de povos originários e de filmagens de operações de extração de madeira e do transporte das toras derrubadas. A declaração de um ativista indígena sublinha a urgência: “A floresta está sendo destruída, não por nós, mas por muitos outros brancos…”. A destruição atinge tanto as culturas indígenas, representadas pelos registros etnográficos, quanto a própria floresta, substituída por vastas pastagens de gado. Fragmentos de obras da artista também são incorporados ao ritmo desassossegado da edição, a anunciar um processo catastrófico premente, mas que ainda poderia ser impedido, como a voz do indígena sinaliza: “Nós não devemos destruir todo o material que nós temos, pensando sempre nas nossas crianças, nossos filhos que estão se criando; e como eles vão viver amanhã e depois?”.

O vídeo Xetá começa com a imagem de um círculo em baixo relevo, no qual uma espiral gravada em pedra se destaca. Em seguida, um crânio de tartaruga se sobrepõe a ela. A narrativa visual é intercalada por uma sequência que exibe uma mulher de costas, coçando a cabeça de maneira repetitiva, provocando uma sensação aflitiva no observador. Surgem rostos escondidos pelas próprias mãos, sugerindo vergonha ou consternação. Entre essa sequência de faces fugazes, reconhece-se o rosto da artista. Se a forma circular inicialmente representava o labirinto psíquico da única sobrevivente Xetá (como a artista acreditava ser), a imaginação artística agora evoca um tempo mítico e cíclico inerente às formas arquetípicas: todos aqueles corpos das mulheres representadas na projeção.

A litografia Nowhere to Go, Screams the Bird, produzida em 2024, apresenta o contorno reconhecível de um rosto com uma boca aberta centralizado, emitindo, aparentemente, um grito poderoso. Esse grito parece provocado pela dor de pássaros que bicam os seus olhos. Embora tênues, os contornos dos pássaros circulando o rosto permanecem inquietantes, sugerindo um ataque ou uma alucinação – ambas possibilidades perturbadoras. De forma mais sutil, um rosto menor é posicionado de cabeça para baixo no topo da imagem. Na parte inferior se reconhece a marca de fotolitos, que se sabe terem sido transpostos para o meio digital e retrabalhados livremente. As matrizes originais da artista foram inseridas em software específico, e operações como ampliação, fragmentação, sobreposição e recomposição tornaram a imagem uma amálgama de formas destituída de volume. Terminadas as estratégias digitais, as imagens tornaram-se litogravuras, mas o processo de impressão procurou dar qualidade única para cada uma das peças. Esse reiterado retrabalho de processos e técnicas sobrepostos acende novamente aquela urgência gestual que assinala, dá a ver, agarra as aparições fantasmáticas para fazê-las gritar.

A mostra Tem índio me espiando, dizia o meu pai emergiu desta confluência complexa de memórias: uma história pessoal entrelaçada com a luta para preservar a memória de um povo ameaçado de extinção. O passado apresentado à artista é uma mistura intrincada de uma memória afetiva, ligada à figura paterna, e uma história de extermínio e morte dos Xetá. Essa dualidade a leva a questionar o papel de seu pai no processo, lançando sombras sobre a imagem idealizada da infância. A necessidade de trazer à tona a história e buscar algum tipo de reparação, mesmo que simbólica, se manifesta na elaboração dos vestígios de suas rememorações, nos gestos repetitivos, nas retomadas de temas e obras, uns sobre os outros, durante os processos de construção das exposições ao longo da sua carreira.

Os Xetá olham por entre o cafezal da infância, olham para o homem de arma em punho e para o mapa da terra original, então cartografada para a posse nomeadora. Os Xetá olham para Josely de Carvalho desde os anos 1980, quando a artista começou a puxar o fio da sua memória que se enovelava ao silêncio do genocídio, primeiro pelos documentos de antropólogos e estudiosos, como José Loureiro Fernandes e Vladimir Kozák, cujas memórias também se explicitam nas entrelinhas dessa exposição; depois pelo ativismo engajado em dar corpo às reivindicações atuais dos sobreviventes Xetá. A artista, assim, busca conectar a sua história familiar com a história de um povo originário, relembrando que não se trata apenas de uma história de extermínio, mas da afirmação urgente da presença dos Xetá hoje, na tentativa de fazer reverberar a sua resistência e seu grito por justiça. A gravura escolhida para o folder da exposição, Melhor não ver (Not to Be Seen), cuja figura remete àquela mulher que, consternada, coça a cabeça no vídeo Xetá, é, assim, signo ambíguo do poder petrificador do olhar da história. Na exposição Tem índio me espiando, dizia meu pai, Josely Carvalho, corajosamente, prefere ver e tecer essa narrativa tensa. Ao falar sobre sua trajetória, ao recompor trabalhos de várias épocas, fala sobre a sua memória particular, intima e querida; mas fala, ao mesmo tempo e com igual insistência, do genocídio indígena e da responsabilidade histórica que nos constitui, de forma inescapável, como indivíduos.

 

Dária Jaremtchuk é professora livre-docente pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP) e leciona História das Artes nos cursos de graduação da EACH/USP e de pós-graduação da ECA/USP. Foi pesquisadora visitante na Brown University e na Georgetown University. Foi também professora visitante na Emory University, Atlanta, pelo Programa Fulbright para a Cátedra de Estudos Brasileiros. Atualmente, realiza pesquisas sobre “exílios artísticos” nas décadas de 1960 e 1970. Publicou recentemente o livro Políticas de atração: relações culturais entre Estados Unidos e Brasil (1960-1970).

17.03.2025

Canteiros

No dia 20 de março, a Cavalo inaugura Canteiros, coletiva com curadoria de Ana Holck. A primeira exposição de 2025 no espaço em Botafogo contará com trabalhos de 13 artistas, entre convidados e representados pela galeria.

No centro da proposta de Holck está a analogia entre o ateliê e o canteiro de obras: nas poéticas aqui apresentadas, os artistas reconfiguram seus ateliês como canteiros, atribuindo novas definições e significados ao termo. Um ambiente provisório de movimento e risco, o canteiro de obras confunde os limites entre espaço de criação e destruição, em operações já investigadas desde a década de 1960. Montar e desmontar, recombinar, torcer, empilhar, dobrar ou amontoar são ações condutoras que revelam uma dimensão sensível no espaço industrial ou tecnológico.

A partir das discussões crescentes em torno do conceito de lugar, os artistas entendem a cidade, sua arquitetura e construções como um campo ampliado de atuação, transbordando os limites habituais de seus locais de trabalho. Nesses processos, um viés crítico marca a relação entre as obras e os elementos práticos em circulação no cotidiano, na medida em que debatem desde a acessibilidade comercial dos materiais de construção, ao retorno do ready-made nos sistemas das artes. 

Tijolos, blocos pré-moldados, vergalhões e vigas ganham peso afetivo e político no conjunto de suas proposições estéticas. Através da manipulação e rearranjo dos materiais, estes trabalhos se tornam uma via possível para desafiar o crescimento urbano acelerado, a exploração excessiva da mão de obra e o utilitarismo compulsório nas cidades.

 

12.11.2024

O bicho vem com a marca do nome

Aos seis, sete anos, eu vi um cavalo, um cavalo de corrida. Senti
então que não há ninguém mais nu do que certos cavalos.
Geni, Toda Nudez Será Castigada

Aos seis, sete anos, Poliana conheceu um cavalo batizado “Meia Lua”,
que trazia a própria meia lua desenhada na testa.
Descobriu que era assim porque ouviu alguém chamando e o animal respondeu.
Essa cena ela conta batendo os pés no chão, fazendo som de casco.

A partir daí, começou a saber que o bicho vem com a marca do nome. A artista brasiliense sempre esteve com os olhos abertos às estruturas que davam forma ao seu entorno. Nascer e crescer em uma cidade artificial, escrupulosamente planejada, convoca atenção ao chão. Uma cidade que, enquanto mito de origem, nega o próprio território. Em citação livre à artista pesquisadora Ana Vaz, “(…) O problema da utopia é o “U” antes do “Topia”. É o “U” que nega o topos. De uma forma muito concreta, podemos pensar no número de árvores endêmicas do cerrado que foram removidas em caminhões, transformando o topos em um “u-topos”, negando a topografia local.”

Poliana faz o gesto oposto. Algo como um site-specific genealógico, arquivístico, onde o resgate do espaço expositivo convoca a narrativa. É a escuta atenta das paredes. O desejo de endereçar a história, as dimensões, as palavras e etimologias do espaço que a convida para entrar. Em sua última exposição, A Terra do Mar, foi o prédio tombado de Ramos de Azevedo que trouxe as perguntas para a boca e o trabalho para as telas. Aqui, é o nome da galeria que convida os pincéis, e traz o ímpeto de desnudar a palavra até uma origem possível.

Como preencher a moldura que está dada? Como entrar no espaço pelo meio, fazer o corpo correr por dentro, encarnar a inscrição? Impregnar-se de si toma tempo e exercício. Como escreveu o frade e filósofo Guilherme de Occan, “O homem só muito lentamente aprende o seu nome.”

A imagem pioneira do cinema foi a de um jóquei em montaria. Foram necessárias 24 câmeras escuras no século dezenove para descobrir a mecânica da marcha do cavalo. The Horse in Motion, do fotógrafo Edward Muybridge, é uma tentativa exaustiva e bem sucedida de fotografar pela primeira vez um galope quadro a quadro, descobrindo que sim, por alguns instantes, todo cavalo que corre, voa. Por vezes, as coisas bonitas são verdade.

Já o cavalo com asas, que voa por tempo contínuo, nasceu de uma gota de sangue da cabeça cortada de Medusa. Essa gota, encontrando o mar, formou uma espuma branca. É dessa mesma espuma, ácida e furiosa, que surge Pégasus, aladíssimo. Um silêncio em voz alta.

É nesse instante do pulo, entre o céu e a água, que Poliana aposta.

O branco da onda explode no rodapé e toma conta das paredes. Os cavalos da artista também surgem da água, escorrendo no pastel seco, nascendo do conta-gotas. Artificialmente, escrupulosamente, pinga e esconde os animais nas paisagens de nuvens inundadas. Com as mãos, reveste de cor o que é indomável.

Em troca de cartas com Clarice Lispector, Fernando Sabino conta de um sonho que teve com a escritora. No sonho, Os dois conversam sobre o novo livro de Octávio de Faria, e ele diz que “Tudo tem um nome e mesmo a fera tem um nome que Octávio não sabe.” Insiste. “Tem um nome, Clarice, esta fera tem um nome. Eu sei o nome da fera!”. Clarice, no próprio sonho, responde “O importante não é o nome, o importante é tudo que existe.”

Penso se é o bicho que traz a marca do nome ou se é o nome que se inscreve a partir do bicho, se é a onda que cria o cavalo ou se é do cavalo que nasce a onda, se as telas são janelas para os animais livres ou se é o cavalo que faz da sala coisa viva onde se pode galopar.
O importante é que trote, nua e inegável, a palavra impossível que nos movimenta.

Em pacto com a imensidão,
azul e longa,
ter quatro patas é um compromisso com o horizonte.

 

Sofia Badim

27.09.2024

Eu não confio

On September 24th, Cavalo presents “Eu não confio (I do not trust)”, a group exhibition organized by Ana Clara Tito at the Botafogo space, featuring works by invited artists and those represented by the gallery. Through tensions between image and sculpture, the exhibited works offer different proposals for the generation of body and presence.

Ana Clara Tito presents photo sculptures that reveal traces of a presence yet to come, as well as signs of pasts and futures of both the matter and the body of the image in deterioration.

In his works, Anderson Borba sculpts using various techniques with wood, such as addition and carving, while also employing cut-out images that highlight the presence of color.

Eustáquio Neves, possibly the artist closest to traditional photography among the six, reconstructs memories that intertwine self-portrait and still life through the chemical manipulation of negatives and prints.

Gilson Plano exhibits three sculptures, one of which the artist conceived as a sculptural gesture, hiding pearls in the walls of the gallery. By mobilizing actions between appearance and disappearance, the work never fully presents itself to the eyes.

Iagor Peres presents a sculpture created from an accumulation of solder and a diptych of monotypes made with the traces of a substance he has been developing for several years, which the artist names pelematerial.

Luiz Roque uses film and ceramics to combine biopolitical symbols and codes, interested in the sensations and plasticities that unfold from vision, weaving different temporalities.

 

26.07.2024

Miolo

21.05.2024

I Am Not The Man You Think I Am

04.04.2024

Aquilo que se tange

27.02.2024

Modo Host

What is being a good host: creating a welcoming, comfortable atmosphere? connecting physically and emotionally with your guests – or giving your body up as nourishment? We, mammals walking the earth, are home to a whole range of life that varyingly helps or defeats us, in an interdependent game of growth and decay.

The human impulse is to crack open the egg, to pick at the growth, to carve into the belly of the whale, once it is pulled out of the deep. This curious intrusiveness is manifest throughout the exhibition, exploring the fine line between care and consumption, hosting and inhabiting.

‘Modo Host’ is a collaborative duo exhibition featuring works by Lila de Magalhães and Thora Dolven Balke. They share a close relationship to Brazil. Lila was born and grew up there before moving to Los Angeles where she lives and works, Thora has made roots there after a residency at Capacete in Rio de Janeiro in 2016. As such they have in common, in different ways, the condition of being simultaneously familiar and a guest.

As if you look into the microscope to find a teeming cluster of life, Lila de Magalhães creates scenarios where humans are joyfully submersed with other species, in moments of sweet surrender, the kind that erases awareness of all that was before and is to come. A range of biomorphic creatures writhe, burrow, and transcend each other’s bodies and that of human figures in detailed ceramic objects and embroideries made on dyed bed sheets with fine threads. Ceramic sculptures and smaller pieces are displayed on the wall or sown onto the sheets themselves, setting up dense, fantastical narratives.

This play with human scale, both in size and time, is also central to Thora Dolven Balke’s photographic works, sculptures and video. From the choice of decidedly human made materials that promise a sinister forever into geological time, to the enlarged prints of cetacean fetuses photographed in the Sandefjord Whaling Museum in Norway, her subjects seem suspended for research, prevented from fulfilling their promise of enormity and movement. As in the silicone bodies cast from infant bath tubs, the figures slouch, slump and glide through space.

In a collaborative piece, the two artists create a display of towels – dyed, stained and folded – to support each other’s works and bid a generous welcome. The exhibition’s mood and colors shift from pinks, browns and greens of soil, flesh and flower, reds and iridescents of insect wings, of egg and seashells, until the sharp, white electric light is switched on to drag large and small towards it, aimlessly and incessantly circling.

15.02.2024

Painéis

15.02.2024

No Music Left

Cavalo (Rio de Janeiro) and Papai Contemporary (Oslo) are pleased to present ‘No Music Left,’ the first solo exhibition outside Norway by artist Aksel Ree. Opening its doors on January 25th, the exhibition delves into the contrasts between the human body and nature, innocence and maturity, creation and death, particularly through the period in the artist’s childhood following the passing of his father, a classical piano player.

Ree navigates the challenges of his youth through the creation of poetic sculptures and installations, delving into the cycles of grief and regrowth after his father’s absence and the family trauma that followed. In the show, the artist presents new series of works including the titular installation—an arrangement of piano pedals suspended from the gallery’s ceiling, complemented by a sculpted severed left foot. In addition, Aksel introduces Interlude (Umbilical and Floral Motifs I and II),a set of marble wall-pieces with Art Nouveau-like floral motifs adorning the belly button scar. 

‘No Music Left’ narrates the delicate process of making amends with the past and making peace with unresolved questions. Those answers may come in simple acts of looking at things in a different perspective. In When I look upside down on a graveyard, it may be observed on a photo projected on the wall with an inverted image. It is an obelisk-shaped gravestone surrounded by trees. The artist repositions this example of phallic architecture into a downward-pointing dagger or stalactite, mirroring this symbol of masculinity and making it face the ground.