Douglas de Souza
I Am Not The Man You Think I Am
texto Ulisses Carrilho
Rio de Janeiro | 23 Maio — 13 Julho 2024
On Earth We’re Briefly Gorgeous¹
texto de Ulisses Carrilho
Far above the Moon
The planet Earth is blue
And there’s nothing I can do
David Bowie
Na ocasião da morte de David Bowie, um artigo publicado na revista “Frieze”² direcionava ao público determinada pergunta: “Você se lembra quando começou a ler?”. Tal indagação, no entanto, não referia-se aos processos de pura alfabetização ou letramento: “Quando você começou a ler o mundo ao seu redor?. Quando um objeto ganhou determinada forma?” O texto, inebriado de certo ethos adolescente, segue questionando em que momentos decidimos nos vestir com nossas roupas de determinada maneira ou quando começamos a entender a importância de emoções evocadas pelo timbre de uma determinada canção, uma música que cala fundo e evoca memórias? No artigo “Hang on to Yourself” o crítico estadunidense Dan Fox dá pistas de uma função alternativa para a cultura pop no subtítulo de seu texto: David Bowie as art school. Nas sua especulações, Fox continua a imaginar que tal função, que poderia ter sido cumprida por um amigo, um professor ou um irmão mais velho que lhe ensinou, quando adolescente, como farejar novas ideias. Ou, como exemplifica o autor, tal função pode ter sido cumprida por uma nota enigmática impressa na contracapa de um álbum de David Bowie. Desde uma interpretação pessoal, especulo que o autor esteja lembrando-se de um certo sentimento inaugural de identificação e pertencimento que sentimos ao ouvir a rebeldia alheia: uma certa ideia de exorbitância, do não caber n o mundo. Se tal sentimento de desadequação é comum às adolescências, não trata-se de exagero imaginar que elas revelam-se por mais tempo nas biografias de pessoas que não adequam-se à cisheteronorma e aos paradigmas do patriarcado.
“I Am Not The Man You Think I Am”, título escolhido por Douglas de Souza para sua mostra na galeria Cavalo, bebe da nutritiva fonte do pop – da indústria cultural de massa ao underground e suas subculturas – para citar uma determinada canção do grupo The Smiths: Pretty Girls Make Graves. Nesta expressão idiomática da língua inglesa, “Pretty women make graves” que remonta ao século XIX, somos alertados dos possíveis perigos que residem no belo, geralmente interpretada como uma observação irônica sobre como a beleza pode ser uma maldição. Nesta mostra, no entanto, não somos chamados pelo título da canção apenas – pelo perigo da beleza – mas por um trecho – que lembra-nos sobre a falência de ideias pré-concebidas. Somos alertados pelo artista que as imagens que revelam-se à primeira mirada merecem, de nós, espectadores, uma demora, quiçá uma dupla leitura. Em outras ocasiões, o trabalho do artista já foi descrito e interpretado à luz de uma perspectiva queer – com um feliz recurso poético, o texto trazia a ideia de um “Verniz Bicha” presente nas obras de Douglas de Souza. Para todos interessados em decodificar por quais desventuras vemos tais objetos representados nas telas que vemos nesta sala de exposição, será preciso debruçarmo-nos sobre seus símbolos e signos.
Se lidas, tais informações jogam justamente com uma certa ideia de engano: o cavalo, o cisne, o veado e o galo. Não se tratam de animais que vemos representados nas telas: mas imagens enquanto ideias, códigos culturais. Entre bibelôs e insígnias da indústria automobilística, sobram objetos de fetiche. Do alto das estantes, guardados com zelo, ou na ponta da lataria de nossas máquinas de velocidade, tais imagens expõem seus poderes simbólicos – e desconfio que é desde o lidar com este arcabouço de imagens que surge o desejo do artista em exercitar a sua representação. As imagens revelam-se sedutoras, mas não só: repletas de brilho, além de serem a oportunidade para o exercício técnico de representação da luz que se revela na superfície de um objeto, também é a oportunidade de mostrar na superfície desses veadinhos, garanhões, cocks e cisnes de pescoços fálicos com gestos graciosos todas as possibilidades de mundo refletidas. “O principal fato do século XX é o conceito de possibilidade ilimitada.”³ J. G Ballard, autor desta frase, escreveu nos anos 1970 uma obra paradigmática: Crash!, um romance que pretendia usar carros numa simbiose pornográfica aos corpos humanos. “As opções multiplicam-se à nossa volta, vivemos num mundo quase infantil onde qualquer procura, qualquer possibilidade, seja de estilos de vida, viagens, papéis sexuais e identidades, pode ser satisfeita instantaneamente.”
Douglas de Souza mescla no seu imaginário uma estética da cultura de massa com cores efervescentes, quentes, pulsantes, exuberantes, sedutoras em conjugação com cinzas metálicos e refletivos, cromados brilhosos que por vezes contrastam com tons ligados culturalmente à doçura, aos estereótipos de um feminino domesticado por tons pastel, que fogem às tonalidades vibrantes, encantados por uma esfera da infantilização. É em tal jogo de justaposições e contrastes que os Raging Stallions do pornô encontram os laços de fita do barroco; que o cisne de Leda é representado sobre a casca protetora de um objeto como o capacete de motociclista; que a superfície de proteção torna-se suporte para o adorno, o artifício, a bichice; que o animal torna-se ponta de lança, signo de potência, estereótipo de masculinidade, medida de força. No vocabulário estético de Douglas de Souza os bibelôs e as insígnias de escuderia parecem ser profanados igualmente, submetidos à categoria de bric-à-brac de uma sociedade encharcada no desejo de consumir e construir identificações, duplos e pertencimentos. O pintor parece utilizar-se com certa ironia de sua capacidade técnica de reproduzir imagens do mundo, como se ousasse construir com tintas de encantamento realidades mais ásperas. Se é bem verdade que tal metafórico verniz bicha está sobre as imagens que pinta, é preciso que atentemos para o fato de que não faz isso apenas no entorno de imagens de um pretenso vocabulário queer. Toma para si, para suas tintas e seu pincel, a possibilidade de retomar motivos da pintura tradicional. Entre a natureza morta e o still life, sustenta-se a tentativa sempre falha – e justamente por isso, subversiva⁴ – de estagnar o tempo das coisas e fazê-las imagem. Como diz o título deste texto, “Briefly Gorgeous”
1 Livre apropriação do título do romance “On Earth We’re Briefly Gorgeous”, de Ocean Vuong
2 Hang on to Yourself: David Bowie as Art School. Por Dan Fox, Frieze, 2016
3 Introdução à versão francesa de Crash!, de J. G. Ballard, 1974
4 Minimalisme, abstraction excentrique et subversion queer em “Pour une esthétique de l’Émancipation – construire les lignées d’une art queer”, de Isabelle Alfonsi